Onésimo
Martins de Castro [2]
A
autodesignação étnica dos indígenas que vivem na região dos rios Cuminapanema e
Erepecuru no Noroeste do Pará, contatados oficialmente em outubro de 1987,
constitui ainda uma nomenclatura em discussão, embora o termo Zo'é [3] esteja
sendo usado a longo tempo pela sociedade envolvente para designá-los. Portanto,
neste artigo, proponho apresentar a trajetória de discussão a respeito, os
fatores linguísticos e antropológicos que fundamentaram a percepção de sua
autodesignação, bem como corrigir algumas distorções de interpretação do termo
adotado atualmente para designar esse grupo indígena.
No
período que antecederam ao contato definitivo com essa população, os habitantes
da região e os viajantes que se aproximavam de seu habitat os designavam apenas
como “Arredios do Cuminapanema”. Isto porque eram totalmente desconhecidos até
mesmo de outros grupos indígenas habitantes da margem esquerda do rio Amazonas,
quando localizados no final da década de 1970 por mineradores que exploravam
aquela região e sobrevoaram algumas de suas aldeias. As únicas informações a
respeito desses indígenas consistiam de sinais encontrados por coletores de
borracha na beira dos igarapés (riachos) e de encontros relâmpagos com
caçadores no meio da selva ou na beira do rio que, felizmente, não causaram
atritos entre eles e os exploradores da região.
O
encontro mais marcante com os Kirahi, como denominam os não índios, se deu na
margem direita de um igarapé denominado por eles de Kiaré, afluente do rio
Cuminapanema. Neste encontro, relatado pelo Toru e outros em 1991, consta
que indo pescar nessa região encontraram um grupo de Kirahi viajando de canoa
(ihiet). Embora tentassem se aproximar deles, mas não conseguindo se comunicar
verbalmente, esses viajantes fugiram, deixando para trás redes de dormir,
facões, machados, etc, que eles recolheram, usaram e gostaram tanto que, quando
perceberam a presença de missionários em sua região na década de 1980, eles
próprios efetivaram o contato com esses Kirahi. Estavam ansiosos por adquirir
esses objetos que havia facilitado em muito suas vidas. Felizmente, nesses
encontros casuais, não há registro de choque entre indígenas e não indígenas.
Somente a malária fora contraída por eles nessa época, cerca de 20 anos antes
do contato efetivado com os membros da Missão Novas Tribos do Brasil - MNTB em
1987. Nessa época a população já estava sendo dizimada por essa doença, mas
voltou a crescer de 119 pessoas para 136 no período de 04 anos em que a MNTB
atuou em parceria com a FUNAI, dando-lhes assistência à saúde dessa população.
Portanto, a partir de outubro de 1987, sua língua e cultura passaram a
serem estudadas e com isso a busca por essa autodesignação efetivada. No
entanto, como eles logo adotaram essas pessoas como parte de seu grupo étnico,
evitavam chamá-los de Kirahi e, consequentemente, não havia motivos para se
auto identificarem como um grupo distinto desses novos amigos que os assistiam.
Também a limitação destes quanto ao uso da língua e pelo fato dos indígenas não
falarem nada de português, não foi possível perceber o termo adotado por eles
durante o primeiro ano de convívio nessa localidade. Porém em meados de 1989,
por brincadeira, um adolescente deixou escapar que eles se autodenominavam
Do’é, sendo os missionários, os agentes da FUNAI e antropólogos, que nesse ano
passaram também a visitar a área e as pessoas que encontraram no passado eram
os Kirahi.
No
entanto, os adultos ao serem inquiridos sobre essa terminologia, insistiam em
não atribuir aos missionários o termo Kirahi, alegando que estes já eram também
Do’é, termo que após análise linguística foi percebido que significa ‘gente de
verdade / gente legítima, ou seja, do- prefixo de humano + ’e partícula de
legitimidade ou veracidade, ou seja, do- + ’e igual a Do’é ‘gente
de verdade’. Como por exemplo: e- prefixo possessivo de 1ª pessoa singular
+ -po ‘raiz da palavra mão; epo ‘minha mão’ e do- ‘prefixo genérico de
humano’ + po; dopo ‘mão de gente’ contrapondo com kwata “macaco aranha’ + -po
‘mão’ kwatapo ‘mão do macaco’. E após maiores estudos, foi possível perceber
que essa autodesignação, opõe-se não somente ao grupo denominado como Kirahi,
mas também aos outros grupos por eles conhecidos em tempos pretéritos, tais
como os Apãm, os Tapu’ãi, os Rusã, etc.
Embora, no final de 1989 esse entendimento já estivesse consolidado e o assunto
apresentado à liderança da MNTB como proposta de encaminhamento à FUNAI para
registro, esses líderes sugeriram aguardar um pouco mais até que levantassem
mais dados que confirmassem essas conclusões. Mas como parte da equipe da MNTB
foi substituída temporariamente durante o ano de 1990, essa pesquisa foi
interrompida e a terminologia não foi oficializada a tempo, dando espaço para
que outras conclusões precipitadas fossem adotas, causando sérios prejuízos
etmológicos que até hoje ainda precisam ser corrigidos, o que se propõe fazer
agora com esta publicação.
Isso
porque, com a chegada de servidores da FUNAI, de outros pesquisadores e de
equipes de reportagens no contexto tribal no ano de 1989, passaram a induzir
certos nomes à essa população que não tinha nada a ver com a terminologia
nativa por eles adotada. Buré, foi atribuído pela imprensa paulista no
jornal ESTADO DE SÃO PAULO em 05/05/89, termo que não consta sequer do
vocabulário deste povo. Tupi do Cuminapanema, sugerido pela antropóloga belga,
Dominique Tilkin Gallois, após ser informada pelos missionários linguistas de
que o grupo pertencia à família Tupi-Guaraní . Posteriormente a mesma
antropóloga e seu mestrando em antropologia no livro, “Povos Indígenas no
Brasil, 1987-1990, atribuíram-lhes o termo Dade dizendo significar ‘nós’[4].
Entretanto nessa língua, dade significa ‘amanhã / dia seguinte’, bem diferente
do termo ore ‘nós exclusivo’ e até mesmo none ‘nós inclusivo’ que também não
são usados como autodesignação por esse povo.
Também um dos sertanistas da FUNAI,
João Evangelista de Carvalho, desconhecendo ainda a língua falada por esse
povo, mas sabendo um pouco de outra língua Tupi-Guarani e aprendendo a palavra
poturu, usada para a madeira da qual fazem o adorno labial, atribuiu-lhes o
termo poturujara na tentativa de chamá-los de ‘os donos do poturu’, associando
este termo a jara ‘dono’ em Tupi-Guarani. No entanto, se assim o
fosse o termo correto deveria ser então poturujet e não poturujara como
sugerido. Porém, como a equipe da MNTB foi substituída temporariamente durante
o ano de 1990, os recém-chegados aderiram a essa proposta, passando a chama-los
simplesmente de Poturu, termo cujo uso perdurou por algum tempo, mas nunca
reconhecido pelos nativos.
Portanto, com o tempo e o correto entendimento tanto da língua como dos
sentimentos histórico-culturais do povo, os membros da MNTB entenderam que, de
fato, o termo Do’é é a terminologia adotada por essa etnia para se
autodesignarem em oposição a outros grupos humanos. Porém, como em 1991 foram
impedidos pela FUNAI de continuarem atuando nessa terra indígena, a antropóloga
acima citada assumiu o controle da área e nesse mesmo ano passou a usar essa
terminologia grafando a palavra como Zo’é atribuindo-lhe o significado de
‘nós’[5], uma forma gráfica também aceitável, porém com significado totalmente
equivocado, como já houvera feito com a palavra dade ‘amanhã’. No entanto, como
até o momento ninguém contestou sua interpretação, essa tradução continua sendo
usada como se fosse a correta.
Retomando a terminologia adotada por essa população, percebe-se que o termo
Zo’e (Do’e) ‘gente legítima’, terminologia já cristalizada para
identificação deste grupo indígena, coaduna-se perfeitamente com o sentimento
de quase todos os grupos étnicos ao redor do mundo que se consideram como
personagem principal, tanto no sentido antropológico como linguístico e também
territorial. Em outras palavras sua cosmovisão é de centro do mundo, pois não
vieram de parte alguma, mas outros é que migraram para terras distantes e nunca
mais voltaram. Esta forma de etnocentrismo nessa auto identificação é
coerente com o registro de Antônio Geraldo da Cunha, no “Dicionário histórico
das palavras portuguesas de origem Tupi, 1978”, quando aponta que a palavra
abaetê "homem verdadeiro" de aba ‘homem’ + etê "verdadeiro /
legítimo", bem como nos registros etnográficos de vários grupos indígenas
no Brasil em que geralmente se consideram como “o povo” em relação aos demais
grupos cujos nomes são diferenciados.
Até
os primeiros anos do contato com a sociedade envolvente, esta autodesignação
era conceituada no fato de que só são Zo’é (Do’e) “os que comem macaco, caçam e
pescam usando arco e flecha, não usam roupas, mas sim o tebe pot ‘adorno
labial’ feito da madeira chamada poturu." Este último elemento é fator principal
em que os distingue-os dos demais grupos indígenas, até então por eles
conhecidos, tais como os Tapuãy: povo inimigo com quem tiveram amizade no
passado, e do qual adquiriram grande parte dos seus elementos de agricultura e
de subsistência, como a banana e a mandioca, mas com a diferença de que usavam
a borduna como arma de guerra. Runsã: povo que no passado raptou um
homem Zo'é chamado Tamirim; Apãm: povo canibal que vivia em casas
elevadas em região alagada, que no passado remoto matou e comeu um de seus
homens chamado Oitxit, mas sendo posteriormente eliminado pelos Kirahi com quem
também tiveram contato naquele tempo.[6]
Não obstante a equipe da MNTB ter
enviado em 18 de outubro de 1993 uma nota explicativa à FUNAI sobre a adoção
dessa terminologia de autodesignação étnica dessa população indígena, não foi
dado notoriedade a esses dados, perdurando-se essa tradução equivocada dessa
terminologia adotada. Portanto, espera-se a partir desta publicação a
interpretação correta do termo Zo’é ‘gente legítima / gente de verdade’
seja considerada pelos que porventura venham ainda a escrever algo sobre
essa etnia indígena.
...................
[1] Adaptação e ampliação de um
documento apresentado à FUNAI em 18 de outubro de 1993 pela equipe de campo da
Missão Novas Tribos do Brasil – MNTB, Edward Gomes da Luz, Carlos Lacerda de
Carvalho e Onésimo Martins de Castro, primeiros pesquisadores da língua e
cultura do povo indígena Zo’é entre os anos de 1987-1991.
[2] Professor colaborador do
PARFOR - Plano Nacional de Formação de Professores / UFOPA, graduado e
pós-graduado em Letras pela Universidade Federal do Pará – UFPA, pós-graduado
em Antropologia Intercultural pelo Centro Universitário de Anápolis – UniEvangélica
e em Gestão Escolar pela Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA;.
E-mail: onesimo.mariana@gmail.com.br, Tel. 93 991159804.
[3]
http://www.funai.gov.br/index.php/zoe/2025-quem-sao-os-zo-e.
[4] GALLOIS, Dominique tilkin &
GRUPIONI, Luiz Donizete. A Redescoberta dos amáveis selvagens. Povos Indígenas
no Brasil de - 1987-1990 CEDI.
[5]
https://pib.socioambiental.org/pt/povo/zoe/1964
[6] Textos gravados, transcritos e
arquivados em pesquisa linguística e antropológica entre os anos de 1987-1991.
Fonte: https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-sociedade/6256022